Aprenda online a se acidentar
Quem poderia imaginar poucas décadas atrás que o telefone seria portátil e “esperto” (daí o smartphone, em inglês), permitindo acessar boa parte do conhecimento humano em qualquer lugar. Os primeiros e caros computadores, privilégio de grandes empresas, hoje foram quase substituídos por celulares no bolso com acesso à Internet e se tornaram bem populares.
Mas, o que isso tem a ver com as motos, motociclistas e segurança sobre duas rodas? Feliz ou infelizmente, o mundo digital tem enorme influência sobre uma forma segura (ou insegura) de se portar ao guidão.
A Internet com todo seu conteúdo (sites, vídeos, rede sociais, grupos de bate-papo, influencers e “influencers”…) se tornou a maior fonte de informação e exemplo inclusive sobre como pilotar.
Quer ver como funciona? Busque no seu celular “como fazer curvas de moto”. Leia os textos e assista alguns vídeos. Claro que aparecerão alguns bons exemplos, didáticos e seguros, mas a quantidade de bobagens e “receitas de acidentes” vão ser enormes. Desde quem acha que uma simples conversão de esquina é parte de uma corrida de MotoGP até outros que aconselham a não deitar na curva para evitar derrapagens (isso em um ótimo asfalto).
Décadas atrás, nos primórdios da rede mundial de computadores, pensadores que achávamos visionários previram que a Internet iria dar voz aos imbecis. O que não se esperava é que existissem tantos idiotas com tanta influência. E também que eles fossem ressuscitar velhas “lendas urbanas” de bobagens, dando uma aparência de verdade. As “fake news” também atacam, e muito, quem está ao guidão e as estatísticas de acidentes com motos e bicicletas, infelizmente crescentes, são prova disso.
Aliás, o próprio celular se tornou causador de acidentes. Motociclistas viciados na vida online insistem em teclar enquanto pilotam. Muitas vezes não perdem só o celular, mas a própria vida.
Freios que não param
Uma das manobras mais simples é a melhor prática para evitar acidentes: frear bem. Principalmente em emergências. Aí começa a confusão. O mais antigo preconceito sobre rodas é difundido online e ganha proporções alarmantes: se usar o freio dianteiro “a moto capota” ou a roda trava e o piloto vai para o chão. Muitos “comunicadores caça-cliques” difundem essa “verdade” com as fortes cores de “denúncia e advertência”.
Só que, literalmente, quem tem a maior ação de frenagem é exatamente o freio dianteiro, responsável por cerca de 70% da capacidade da moto parar. O freio traseiro, no máximo, ajuda somente com 30% na frenagem.
E muitos motociclistas, principalmente iniciantes ou mal-informados, usam apenas o freio traseiro.
Fácil constatar: hoje praticamente quase todos os modelos de motos contam com páginas de admiradores nas redes sociais. Mesmo no caso de motos caras e rápidas, luxuosas ou esportivas, sempre tem alguém reclamando que sua moto comprada nova “acabou” o freio traseiro em menos de 10 mil km rodados. Aí surgem dezenas de “especialistas” falando mal da fábrica, que não tem qualidade, do nosso País para onde só mandam lixo… Raramente aparece uma voz da razão para alertar que o usuário está “pendurando” no freio traseiro e se esquece que o dianteiro é o que realmente consegue parar em espaços muito mais curtos.
Claro que os fabricantes perceberam esta luta inglória e atacaram com o dual brake, ou freio combinado (cada um adota um nome comercial), um sistema que basta acionar o freio traseiro e automaticamente o dianteiro também entra em ação. Mesmo assim, raramente é uma frenagem tão eficiente quanto a feita por um motociclista — bem informado ou treinado — que sabe usar corretamente o manete do dianteiro e o pedal do freio traseiro.
Para evitar o “pavor” da derrapagem da roda dianteira em uma frenagem, hoje muitas motos saem equipadas de fábrica com o ABS, o sistema que impede o travamento da roda em uma frenagem de emergência. Voltemos para a rede social: “Usei com força o freio dianteiro da moto e o manete começou a trepidar”. “Levei na concessionária e não acharam nada de errado”. E lá vem xingamento (com coro quase uníssono da turma) que “a moto não presta”, “onde já se viu”…
Simplesmente o “piloto” não sabe que o ABS, quando entra em ação, realmente provoca uma leve trepidação no manete (ou pedal) de freio e isso é ótimo. Impede que a roda trave em uma frenagem mais emergencial ou uma pista de baixa aderência.
E tudo isso é um simples exemplo de uma manobra básica e fundamental para escapar de situações de risco. Algo importantíssimo na segurança ativa, o capítulo que cuida de formas de evitar acidentes.
Entrando na segurança passiva, a maneira de diminuir lesões quando o acidente é inevitável, o panorama também é complicado. Não faltam conselhos online que a melhor vestimenta para pilotar em nosso país tropical é bermuda, chinelos e uma camiseta sem mangas. Ou que a melhor forma de usar o capacete é com a cinta aberta, pois dá menos trabalho para tirar e colocar, sendo muito mais prático principalmente para motoboys. E assim, antes mesmo do motociclista atingir o chão em um tombo, o capacete voa mais longe que sapato de atropelado.
Tem solução?
Claro que este problema tem solução, só que ficou mais trabalhosa devido ao enorme volume de informações contraditórias online. Boas campanhas informativas e intensificação de cursos de pilotagem defensiva devem ser intensificadas.
E para aqueles que estão inseguros no espetacular mundo sobre duas rodas, o pedido é para apurar o senso crítico. Evitar o “É verdade porque vi na Internet”.
Site e páginas dos fabricantes de motos, associações sérias, jornalistas ou mesmo influencers comprovadamente responsáveis e experientes sobre duas rodas devem ser sempre a melhor fonte de informação. E todo fabricante tem grande interesse em manter seus consumidores saudáveis, o que só ocorre quando se sabe usar todo o potencial de uma moto, não só para acelerar, mas também para fazer curvas tranquilas e frenagens eficientes.
E lembrar que, apesar de tanto uso dos celulares e da Internet, a vida real continua. Nada substitui um bom instrutor, um curso prático de pilotagem defensiva ou mesmo os conselhos das blitzes de segurança de muitas entidades (inclusive a Abraciclo), que podem ajudar, e muito, a aproveitar toda a utilidade e o prazer de andar de moto com segurança. Mas, quem é viciado na vida online também pode encontrar boas matérias e vídeos confiáveis que vão colaborar nas ruas e estradas para se ter a deliciosa sensação de vento no rosto com maior tranquilidade. E segurança.
Se você tem menos de 50 anos, provavelmente eu comecei a ter moto antes do seu pai conhecer sua mãe. Isso ocorreu quando eu tinha 12 anos e consegui uma cinquentinha Mondial italiana ha mais de seis décadas. Fui parar na engenharia Mauá, de moto é claro, e fiquei anos dividido entre a engenharia e o jornalismo. Quando fui convidado para lançar a revista Duas Rodas, lá em 1974, acabei optando por ser um dos primeiros escribas especializados em motos. Fiquei na Duas Rodas durante quatro décadas. Quantas motos tive: centenas. Quantas motos testei: milhares. Quantos km já rodei: Milhões. Mais importante que esses números é o prazer de rodar, viajar, fuçar, tirar cacos velhos da UTI e com as motos encontrar paz e alegria, mesmo nos momentos mais complicados da vida.
Grande Josias