AVENTURA: QUANDO A PONTE FECHA A COISA COMPLICA

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Eu, a Dani e o João, estávamos em Cusco dentro da van que nos levaria até a estação do trem pra Machu Picchu e aproveitamos para perguntar ao motorista qual era a distancia até Nazca, destino da primeira etapa da volta da nossa viagem pro Peru. Queríamos conhecer suas famosas e polêmicas Riscas. O prestativo peruano disse que a distância era “x” horas. Curioso, no Peru quando indagamos a respeito de alguma distância todos respondem em tempo. Fica a pergunta: com qual veículo?
Falou também de um trecho de terra e acrescentou que teríamos de atravessar um rio pela água, a ponte estava interditada, mas não teríamos dificuldade. Era muito raso e todos estavam passando por lá para ir a Nazca. Dissemos também que precisávamos de um mapa atualizado do Peru de preferencia com as distâncias em quilômetros o que originou risos da turma. Ele se prontificou a nos pegar na estação no fim da tarde na volta de Machu Picchu.
A luzinha de alerta deu umas piscadas com a história da travessia a vau do tal riozinho, mas logo se apagou. Não há preocupação que resista a uma viagem pra Machu Picchu.
Na volta do passeio lá estava o fiel motorista com um mapa do Peru, com as distâncias em quilômetros dizendo tratar-se de um presente. Ficamos muito sensibilizados e surpresos com a gentileza, mas não aceitamos, fizemos questão de pagá-lo.  O senhor ainda fez questão de fazer um city tour antes de levar-nos pro hotel.  Nesta hora só nos restou ouvir com atenção suas explanações torcendo pra que as igrejas e os monumentos, belíssimos por sinal, terminassem logo. O passeio de um dia pra Machu Picchu é meio cansativo. Na hora a gente não sente, ficamos anestesiados com tanta beleza e história.
Na manhã seguinte teríamos um trecho de aproximadamente 160 km de terra depois de Abancay e com a estória da travessia de rio pela água fui dormir com aquela luzinha vermelha de alerta piscando na minha cabeça.
Lembrei que os dois cariocas que conhecemos no Paso de Jama montados nas suas BMW nos alertaram sobre estes 160 km de terra e não comentaram nada sobre travessias de rios a vau.
Saímos bem cedo do hotel, a jornada seria longa e a previsão seria dormir em Nazca. A próxima cidade era Abancay, onde começaria o temido trecho de terra.
Paramos para abastecer no meio da subida na saída de Cusco e perguntei ao gerente sobre os rios que teríamos de atravessar no caminho para Nazca. O rapaz riu da minha preocupação e confirmou a existência do tal rio, muito largo, mas que não teríamos problemas, a travessia seria feita por cima da ponte.
A estrada sobe e desce a cordilheira numa sequência interminável de curvas, com um visual incrível e um asfalto maravilhoso,
O perigo aqui está nos pequenos desmoronamentos. Devem ocorrer diariamente e espalham pedras de vários tamanhos na pista.
Passamos por várias equipes de operários trabalhando na limpeza dos “Derrumbes”.
Em vários locais, a estrada foi feita encima das trilhas aonde os pastores conduziam seus rebanhos. Atualmente eles continuam usando estas trilhas e quando chegam nestas gargantas simplesmente entram na rodovia e com toda calma do mundo vão tocando a bicharada.
Foi neste trecho da viagem, muito próximo a Machu Picchu, que algumas crianças atiraram pedras nas motos quando passamos. A Dani já tinha sido ameaçada de apedrejamento quando tentou filmar as vendedoras peruanas na feira livre de Desaguadero e agora o João, que neste trecho andou bastante tempo na frente, foi recebido com pedradas duas vezes. Eles riam não parecendo estar irritados ou contrariados. Seria uma molecagem ou uma forma estranha de saudar motociclistas estrangeiros?
Em vários locais, fomos chamados de “gringos” e chegamos a pensar que esta antipatia fosse um protesto contra o imperialismo americano. Esquecem que num passado não muito remoto, seus antepassados tinham um império que dominava grande parte da América do Sul e que este império de 6 a 20.000 milhões de habitantes foi destruído por Francisco Pizarro a frente de somente 180 soldados espanhóis.
Pizarro contou com a ajuda de aproximadamente 3.000 homens de tribos inimigas dos Incas cujo exército, muito bem treinado, não resistiu às táticas infames e cruéis dos espanhóis que criaram uma sangrenta guerra fratricida.
No entanto, bastava saber que éramos brasileiros, em qualquer lugar por onde andamos, para que fossemos muito bem tratados.
Caracoles de Abancay

Chegando a Abancay, lá de cima da montanha, a gente avista a cidade no fundo do vale numa distância relativamente pequena, mas que demorou uma hora para ser percorrida. Muito diesel esparramado nas curvas destes “caracoles” intermináveis.
Saindo de Abancay começava a estrada de terra em péssimas condições e com sinalização precária.
No posto de abastecimento na saída da cidade a frentista, muito solícita, nos presenteou com dois refrigerantes de 600 ml da nossa preferência. Ali quem dá gorjeta não é o cliente e sim o dono do posto.


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Pelo mapa comprado em Cusco dava pra ver que de Abancay a Chalhuanca teríamos que enfrentar os tais 164 km pela terra. Cruzamos inúmeros riachos com muito cuidado escolhendo bem onde colocar a roda dianteira.
A recomendação do Armando Padilha de não viajar a noite pelo Peru vinha na lembrança com frequência. Não daria mais para chegar a Nazca com a luz do dia e não sabíamos nada sobre as condições de hospedagem nas pequenas cidades do caminho.
Por volta das quatro da tarde, depois de ter andado 60 km naquela estrada infernal, encontramos uma fila de uns 15 veículos parados com todos seus ocupantes na beira da estrada. Eram ônibus, caminhões e alguns carros com tração nas quatro rodas. Fomos avançando lentamente até o começo da fila tomando o maior cuidado com as crianças que aparentavam estar cansadas de esperar. Uma placa sinalizava: “Tramo em Construccion, Huayquipa Sta Rosa, Pase Cerrado de 7:00 am A 12:00m, 1:00pm A 6:00 pm”. Assim fica difícil não andar a noite no Peru.

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Estrada fechada por 10 horas

Neste dia o João tinha ouvido três camponeses que caminhavam pela estrada gritarem: “Gringo, vai ajudar a causa” e ficou matutando sobre o significado da frase. Será que teremos de contribuir para alguma causa voluntariamente ou a contribuição vai ser o produto do roubo do nosso dinheiro e das nossas motos mais pra frente?
Estacionamos bem na frente da placa, ninguém reclamou por termos furado a fila. Fomos cercados por varias pessoas que já estavam ali há algum tempo. Ficaram até contentes: tinham alguma coisa nova para quebrar a monotonia das próximas duas horas.
Enquanto eu falava sobre o GPS para a garotada, o João tentava com o encarregado da placa, autorização para que pudéssemos prosseguir argumentando que as motos talvez pudessem passar pela obra.
O encarregado autorizou o João a falar com seu chefe mais a frente para ver se ele liberava a passagem das motos.
Depois de alguns minutos volta o João dizendo que conseguiu autorização e lá fomos nós sob os olhares menos contrariados dos meus “alunos”, já sabiam da nossa nacionalidade e das nossas dificuldades. Cinco quilômetros a frente não deu para prosseguir, tinham dinamitado a encosta e as máquinas estavam limpando a estrada e tivemos que esperar até as 18 h. mesmo.

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Dinamite na pista

Este avanço já foi muito bom porque na hora que liberassem a estrada estaríamos 5 km a frente do estouro da boiada. Enquanto conversávamos com três peruanos que esperavam o chefe da obra para pedir emprego fiquei imaginando como o pessoal que estava preso lá atrás viria depois daquela espera. Os primeiros da fila deviam estar parados há pelo menos 4 horas.
Estrada liberada, tendo ainda 95 km de terra pela frente, saímos rapidamente e fomos desviando como pudemos dos carros que estavam presos do outro lado da construção e depois de andar 15 km chegamos num vilarejo muito simples que  parecia ser o acampamento da construtora que estava asfaltando a estrada. De Cuzco até Lima este era o ultimo trecho de terra.
No vilarejo os caminhões da obra foram saindo da estrada se dirigindo ao estacionamento da construtora e alguns pedestres indicaram nosso caminho que terminou dois km adiante na beira do rio Pacacocha que aqui tinha uns trezentos metros de largura, não muito profundo.
Já era seis e meia da tarde, começava escurecer. Ficamos alguns minutos parados na beira do rio, vendo os caminhões, ônibus e algumas peruas com tração nas quatro rodas atravessando em zig-zag e aos solavancos a estrada imaginária com água pela porta. A primeira caminhonete da fila das obras na estrada parou do nosso lado e o motorista, visivelmente nervoso, desceu para desligar manualmente a roda livre da caminhonete. Ofereceu para levar nossas motos até o outro lado na caçamba. Seu carro tinha cabine dupla, nossas motos nem caberiam na sua caçamba. Agradecemos muito a gentileza e ficamos vendo o peruano atravessar a correnteza do rio Pacacocha.
A Dani aproveitou os últimos minutos de luminosidade para gravar aquela cena surrealista e o João indagou qual era minha experiência numa situação daquela. Falei que não daria para passar de moto pelo rio ainda mais àquela hora. Há menos de um ano tinha ficado uma hora preso num córrego de 10 metros de largura no Paso de Jama, historia e fotos que ele conhecia muito bem.  Nesta altura escureceu de vez.
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Frame do filme da Dani

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Frame do filme da Dani

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Frame do filme da Dani

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De moto por aqui não dá

Só podia ser este o rio que o motorista da van tinha falado. Era realmente raso, mas muito largo com o caminho sinuoso submerso. E a ponte que o gerente do posto de Cusco disse que usaríamos rindo da nossa preocupação?
Voltamos para procurar a tal ponte que certamente estava interditada. Aquele povo todo não estava se arriscando naquela travessia por esporte. Nossa esperança seria conseguir passar com as motos por qualquer cantinho.
Voltamos ao vilarejo procurando no escuro uma saída que nos levasse até a ponte. Depois de andar alguns quilômetros, chegamos numa ponte à esquerda, mas os peruanos locais disseram que não era esta.
Enquanto pensávamos no que fazer chegou uma viatura da policia rodoviária peruana. Perguntaram o que estava acontecendo. Contamos toda historia para os dois jovens e eles sugeriram que nós os acompanhássemos até o vilarejo novamente onde iriam verificar se tínhamos condições de passar pela ponte.
Voltamos pela terceira vez ao vilarejo tendo agora como batedor a perua Toyota da policia “carretera” com suas luzes no teto acessas e ligando a sirene quando alguém teimava em não sair do nosso caminho.
A Toyota parou no centro do vilarejo numa bifurcação que nem tínhamos notado e os policiais pediram que esperássemos ali, iriam verificar se a ponte oferecia condições de passagem para as nossas motos.
Voltaram minutos depois dizendo que não haveria condições de prosseguir. A ponte estava em reparos e havia uma máquina fechando totalmente o caminho, mas que não havia problema, às oito horas iria passar um “carregador frontal” que nos levaria para o outro lado do rio. Enquanto esperávamos o “carregador frontal”, máquina que eu não tinha a menor ideia do que fosse, ficamos conversando e contando nossa viagem para os prestativos policiais.

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Policia “Carretera” Peruana

Os policiais levantaram nossas fichas completas, sobre nosso trabalho, objetivos da viagem, e quando perguntaram o preço das motos demos os preços na Alemanha em dólares, mais baixo impossível. Ficaram surpresos e disseram que elas custavam mais caro que suas Toyotas. Eles reclamaram também do seu atual presidente, Alberto Fugimore, que não cumpria as promessas de campanha.
O João começou ficar preocupado com nossa situação desde o momento que sentiu o hálito alcoólico de um dos policiais, e pensou que a hora de “ajudar a causa” estava prestes a acontecer.  Quando o “carregador frontal” apareceu teve certeza.
A máquina era uma retro escavadeira imensa e a ideia dos policiais era que fôssemos até a beira do rio lá na frente, naquela escuridão, onde abaixariam sua pá, subiríamos com a moto, e atravessaríamos “confortavelmente” o rio. Uma de cada vez. Já tínhamos perguntado quanto custaria o serviço e os policiais disseram que para eles não era nada e que a gente daria alguma coisa depois para o maquinista, “voluntariamente”.
O “carregador frontal” veio da direção da ponte interditada, virou na nossa frente e sem parar já foi indo para a margem do rio. Os policiais fizeram sinal para que seguíssemos a viatura. Na escuridão deu pra ver os olhos arregalados do João e a Dani, sentadinha na garupa, nem respirava. Os meus olhos também deviam estar bem arregalados. Gritei pro João; vamos, mas não atrás da policia e sim em direção oposta no rumo de Abancay. Na hora tive que decidir o que seria menos perigoso, ir atrás da policia até a margem do rio para avisá-los, com alguma desculpa esfarrapada, que tínhamos desistido da travessia ou simplesmente dar meia volta e “fugir” em direção a Abancay distante 80 km dali. Optei pela “fuga” e nunca saberemos se esta opção é que permitiu estar contando esta historia agora.
Ao ver o trator a primeira ideia que tive foi no estado que ficariam as motos depois da travessia deitadas numa pá carregadora chacoalhando no leito esburacado do rio. A primeira imagem que veio à cabeça do João foi do maquinista cavando umas valas na beira do rio com a retro escavadeira. Pode parecer paranoia, mas quando soubemos, seis meses depois a historia do Richard Pethigal, californiano que morava há oito anos no Brasil, praticante de parapente na praia de Guarda do Embaú em Santa Catarina e guia de “rafting” no Rio Apurímaque no Peru, concluímos, mais uma vez, que a minha opção foi a melhor. Ele ficou preso dois dias nas mãos de guerrilheiros de uma facção do extinto Sendero Luminoso numa corredeira do Rio Mantaro na Amazônia Peruana e só foi libertado depois de “ajudar a causa” com todos seus pertences.
Voltamos para Abancay, à noite, naquela estrada em péssimas condições como se estivéssemos participando de um enduro de velocidade. A volta foi bem mais rápida, os riachos que tínhamos atravessado com todo cuidado na ida nem percebemos agora na volta.
Na hora não entendi bem a pressa do João em chegar a Abancay. Ainda no vilarejo, pedi pro João iluminar meu GPS pra poder liga-lo e ele disse que não achava interessante parar ali e já saiu acelerando.
Depois de uma hora com o João quase o tempo todo de pé na pedaleira, eu com a Dani na garupa equilibrando sua mochila fotográfica no colo, chegamos a Abancay e encontramos rapidamente um bom hotel.
A sensação de chegar numa cidade à beira do asfalto, de cara achar um bom hotel, guardar as motos no estacionamento fechado atrás das janelas dos nossos quartos depois daquele susto, tomar um belo banho e jantar confortavelmente no restaurante do hotel, é indescritível.
Foi durante o jantar que conversamos sobre os pensamentos que vieram nas nossas mentes naqueles momentos críticos, e foi ai que eu entendi o motivo da pressa do João.
A minha era relativa. Se os policiais voltassem para tirar satisfação ou avisassem seus colegas para nos parar no posto policial que havia no caminho de volta eu diria que minha filha começou passar mal e quis voltar para a cidade mais próxima. A pressa do João foi devida à premonição que teve do tratorista cavando calmamente um buraco nas margens daquele rio.
Resolvemos também riscar as riscas de Nazca do nosso mapa. Para conhecê-las teríamos que dar uma volta muito grande. Fica para a próxima.



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